Corpo de Trabalho, o cinema e as questões laborais | Doclisboa’20

CORPO DE TRABALHO dá nome ao programa que incluirá filmes de cineastas como Harun Farocki, Carole Roussopoulos, Elisa Cepedal ou Jonas Heldt – algumas  das propostas do ciclo que promete lançar várias reflexões sobre o trabalho e as questões laborais que nos afectam a todos.

O programa resulta da parceria com a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho (EU-OSHA) e pretende promover a discussão, através do cinema, sobre direitos humanos e questões sociais relacionadas com as questões laborais, um dos pontos mais estruturantes da nossa sociedade.
O Prémio Locais de Trabalho Seguros e Saudáveis, criado há 11 anos para melhor documentário sobre questões laborais, será atribuído no Doclisboa a partir desta edição.  Para este prémio, será apresentada uma selecção de dez retratos contemporâneos focados nesta temática que serão exibidos no Cinema São Jorge, no primeiro momento do festival –  22 de Outubro a 1 de Novembro.

Paralelamente, e como complemento ao programa centrado na actualidade apresentado em sala, será programado na plataforma online da DAFilms.com um conjunto de filmes que procura fazer um mapeamento histórico da evolução da presença no trabalho nas nossas vidas no último século e das representações cinematográficas nas suas diferentes possibilidades,  com vista a estabelecer novos diálogos entre passado e presente através de uma diversificada proposta de objectos cinematográficos que tanto têm de poético como de acutilante. Para ver em paralelo, também no primeiro momento do Doclisboa, numa programação espalhada pelos dias 22 de Outubro e 3 de Novembro. 

Os filmes da selecção contemporânea e da retrospectiva histórica oferecem uma teia de ligações e de pontes. Se no princípio do cinema, os irmãos Lumière começaram por representar em película a saída dos trabalhadores de uma fábrica, tema que Harun Farocki, um século mais tarde, se propôs dar continuidade em Workers Leaving The Factory, num olhar subtil sobre as vidas dos trabalhadores dentro e fora da arena do trabalho, Jonas Heldt, por seu turno, dá-nos uma leitura contemporânea, 25 anos depois, em Automotive, onde nos deparamos com duas funcionárias de uma fábrica da Audi, representantes de uma geração que se depara com a obsolescência do trabalho face à evolução tecnológica vertiginosa.

A comunidade mineira da pequena localidade de Barredos, na região das Astúrias, que durante anos se viu envolvida em greves e lutas pelos seus direitos e que agora se vê a braços com uma progressiva desindustrialização que a vai deixando cada vez mais moribunda, em Work or to Whom Does the World Belong, de Elisa Cepedal, é também uma lembrança do rosto desiludido da trabalhadora da fábrica Wonder de Saint Ouen que Hervé Le Roux recuperou em Reprise, recusando o regresso à terrível rotina, depois das promessas vividas durante Maio de 68 sobre uma mudança social que ela não viu acontecer. 

De transformações sociais também fala Mladen Kovačević em Merry Christmas, Yiwu, explorando o paradoxo crescente na cidade chinesa de Yiwu, onde as 600 fábricas de Natal que ali operam dão azo a que os seus trabalhadores sonhem com uma vida mais luxuosa e cada vez mais distante do ideal comunista.

Ao longo das últimas décadas, temos assistido a profundas mudanças no mundo laboral que têm marcado a sociedade, em que o desemprego, a precariedade e a liberalização têm dominado e impulsionado novas paisagens. Se em California Company Town de Lee Anne Schmitt, percorremos uma extensa superfície do estado californiano abandonada pelas indústrias que estiveram na sua génese, no outro lado do oceano, os mineiros de sal e investigadores ingleses que trabalham lado a lado no limite da biosfera, nas profundezas do condado de North Yorkshire, são objecto de observação da câmara de Federico Barni e Alberto Allica, da qual resulta a curta-metragem Under the North Sea. Já Jeong-keun Kim desce até ao subsolo do metropolitano sul-coreano para, em Underground, longe da comoção da cidade, filmar as pessoas que compõem a força motora daquele universo subterrâneo.

Em The Kiosk, Alexandra Pianelli acompanha, do balcão do quiosque de jornais da sua mãe, num jogo inocente e cúmplice com os vários clientes habituais que vão surgindo. Mas é através da mesma janela que também assistimos à evolução do mundo e à crise que atravessa a imprensa escrita. Já em Scenes in an Atelier, de Madelaine Merino, um atelier de restauro e conservação de obras de arte serve de plano de fundo para as conversas entre três jovens estagiárias que, enquanto trabalham, discutem temas como arte, amizade, família e naturalmente o próprio trabalho.

A crise tecnológica e económica também está patente em Rules of the Assembly Line, at High Speed, filmado por Yulia Lokshina numa pequena localidade da Alemanha Ocidental, onde se encontra um dos maiores matadouros do país. O dia-a-dia da comunidade e as precárias condições em que vivem os imigrantes do Leste Europeu contrastam com as imagens de estudantes do ensino secundário que estudam um antigo texto, “Santa Joana dos Currais” de Bertolt Brecht, ao mesmo tempo que reflectem sobre o capitalismo alemão dos nossos dias.

A fragilidade económica actual é também o denominador comum entre um agricultor do Kansas, um trabalhador de uma fábrica em Ohio, que se encontra em ‘lay-off’ e uma condutora da Uber na Flórida. Mas nem por isso, os três protagonistas de The Disrupted, de Sarah Colt, se deixam abalar. Pelo contrário, à luz da instabilidade económica norte-americana, estes são verdadeiros retratos de optimismo e resiliência.

Se falamos de trabalho e de direitos sociais, falamos também indubitavelmente do papel laboral da mulher, que tem sido objecto de representação cinematográfica por parte de tantos cineastas. Vejamos o filme de Laura Herrero Garvin, La Mami, que nos lança uma reflexão. Filmado nos camarins de uma casa nocturna na Cidade do México, onde a matriarca La Mami gere um grupo de dançarinas exóticas que ali encontram espaço seguro para a conquista de fortunas fáceis e imediatas, este é um retrato de uma comunidade de mulheres que, a pulso firme, ditam as regras da casa. O olhar discreto da realizadora está cheio de nuances e deixa no ar algumas dúvidas sobre quem afinal controla aquele mundo.

No contexto deste programa, iremos realizar ainda um debate online: Thinking Labour Practices Through Film, uma mesa redonda que terá lugar no dia 28 de Outubro, entre as 15h e 16h30 (UTC +0), sobre a relação entre o cinema, o trabalho e as suas representações cinematográficas. Este debate acontecerá online, de forma a poder incluir participantes de diferentes contextos e territórios.

Mais informações sobre o programa aqui.