O realizador, coreógrafo e actor Seki Sano traduziu L’Internationale para japonês. Em 1926, foi o primeiro no seu país a trazer a peça soviética para o palco. Estava a estudar o método de Vsevolod Meyerhold e integrava a primeira linha da vanguarda de esquerda. Naturalmente, teve de sair do Japão, em 1930, para o seu primeiro exílio. Uns anos mais tarde, deu por si na União Soviética, a assistir o seu professor, Meyerhold, e Konstantin Stanislavsky entre 1932 e 1937. Seki Sano teve a sorte de escapar ao estalinismo a tempo e encontrar um último refúgio no México, onde se tornou “um pai do teatro contemporâneo”.
Fundou o Teatro de las Artes e o Teatro de la Reforma e em conjunto com Waldeen von Falkenstein levou à cena o primeiro bailado moderno mexicano, La coronela, composto por Silvestre Revueltas. “O épico revolucionário na dança moderna apresentava a heroína, la coronela, símbolo da Revolução, com padrões populares”, de acordo com o estudioso Michiko Tanaka. Não é de admirar que Paul Leduc estudasse teatro com ele.
O intercâmbio cultural fascinante e quase inimaginável entre partes distintas do mundo, no rescaldo do tumulto histórico colossal, é um elemento essencial do pensamento de Paul Leduc sobre história e arte, que se reflecte nas suas obras, de Barroco ao díptico de animação educativo Bartolo, onde a música de Bach – uma das figuras centrais do universo do realizador – é mostrada como sendo inseparável das primeiras experiências artísticas da população original do México.
Esta experiência formativa inicial de Leduc, estudando teatro antes de descobrir o cinema, também permite compreender melhor a sua procura constante da forma cinematográfica. Nos seus filmes, reaparecem constantemente tipos diferentes de estética teatral, do teatro barroco à dança e mesmo cabaré. Até a animação tridimensional Los animales começa e acaba com uma cortina. Apesar de vir de um local e de um contexto diferentes, levou a cabo a sua procura de linguagem paralelamente à obra estilizada de cineastas modernistas como Manoel de Oliveira, Werner Schroeter ou Raúl Ruiz (este último também um realizador de esquerda da América Latina, mas que de algum modo encontrou o seu lugar único na linhagem do surrealismo francês… que, por sua vez, se equipara à ironia da história com o México – pense-se em André Breton a visitar Frida Kahlo e Diego Rivera ou num período tardio de Luis Buñuel).
Apesar das difíceis condições de produção, ¿Cómo ves? poderia ser o primeiro filme de Paul Leduc, aquele em que encontrou a fórmula alquímica do seu cinema. O estudioso Oscar René González López, no seu artigo no livro essencial Nueve miradas a la obra de Paul Leduc (editado por Aleksandra Jablonska e José Axel García Ancira), chama-lhe um anagrama cinematográfico. O filme é composto por uma série de cenas que se espelham umas às outras. Começa com um prólogo, onde um casal (de narradores, comentadores, testemunhas, sobreviventes?), num cenário quase pós-apocalíptico, introduz o público à atmosfera desesperada do filme.
Dollar Mambo tem um começo muito semelhante, mas, desta feita, o diálogo é interpretado por um ventríloquo desacompanhado e o seu boneco (tornando-se, assim, num monólogo) enquanto os outros actores deambulam em silêncio. Estes tipos de introduções não se afastam muito do teatro clássico indiano, onde eram apelidados de āmukha e prastāvanā. A diferença, no entanto, é que Leduc termina ambos os filmes com cenas quase idênticas, transformando os prólogos em epílogos. Já descobrira esta composição circular em Frida e manteve-se-lhe fiel. Barroco emprega a mesma técnica, mas sem qualquer palavra. Esta estrutura circular é importante para o realizador, definindo a sua abordagem ao tempo, o qual, nos seus filmes, não é linear. Esta é a ideia política central de Barroco, propondo um outro entendimento do desenvolvimento da história e da cultura.
O teatro assenta num sentido estreito do colectivo. E Paul Leduc entrou no cinema fazendo parte de um colectivo cinematográfico, Cine 70, que ainda não foi suficientemente estudado e mostrado. Só em 2022, Nicole Brenez e Paul Grivas apresentaram a primeira retrospectiva deste movimento na cinemateca francesa com o título Ciné 70, groupe insurgé, Mexique 1967-1970 [Cine 70, Grupo Insurgido, México 1967-1970]. Por vezes, não e fácil atribuir a autoria dos primeiros documentários do colectivo, porque os genéricos só mencionam os nomes dos que neles trabalharam, sem atribuir tarefas (o que também sucede nos primeiros filmes de Markku Lehmuskallio, o protagonista da retrospectiva do ano passado do Doclisboa).
No que concerne ao seu percurso individual enquanto cineasta, a obra de Leduc conservou esta ideia de companheirismo. O director de fotografia Ángel Goded, por exemplo, cujas panorâmicas encaixavam tão bem na composição dos filmes, trabalhou com Leduc durante mais de quarenta anos. Só mais tarde é que Josep M. Civit, director de fotografia de Iguana (1988) e de Road to Nowhere (2010), de Monte Hellman, se juntou à equipa. O jornalista José Joaquín Blanco foi o argumentista das quatro longas-metragens de Leduc ao passo que Cecilia Toussaint e Jaime López foram parcialmente responsáveis pelos seu universo musical. Por fim, um actor famoso, Robert Sosa, tem um lugar muito especial no universo de Leduc, trazendo a inocência do seu olhar para ¿Cómo ves?, Barroco, Latino Bar e Dollar Mambo.
Com o passar do tempo, o bailado de olhares nos filmes de Paul Leduc substituiu os diálogos e as canções ocuparam o lugar da palavra falada. Curiosamente, a maioria das suas obras visuais inspiraram-se em obras literárias, quase sempre romances. Livros de escritores como Alejo Carpentier, Roque Dalton, Carlos Fuentes, Federico Gamboa, Rubem Fonseca e José Revueltas passaram a ser a fonte de inspiração para os seus filmes.
Entre as dezenas de projectos inacabados – infelizmente, Leduc conseguiu finalizar muito menos filmes do que as ideias que elaborara –, encontram-se três tentativas infrutíferas (em 1974, 1994 e 2014) de adaptar Under the Volcano, de Malcolm Lowry, The Monk, de Matthew Gregory Lewis, e outros livros de Carpentier e Revueltas. O panteão dos seus filmes biográficos poderia incluir obras sobre a fotógrafa e revolucionária Tina Modotti, o músico Tom Zé e o guerrilheiro nicaraguense Augusto César Sandino.
Todavia, quase nenhum dos seus filmes poderia ser considerado uma adaptação, já que entra sempre num diálogo vivo com os textos, por vezes tornando-os irreconhecíveis. A forma como Leduc trabalha com a música também é especial, porque a selecção das canções cria um “texto” novo para o filme, paralelo à trama, acrescentando uma camada de tempo e espaço, um método que também é utilizado no teatro moderno.
O que levou séculos em Barroco e Bartolo passou a ser muito rápido com a chegada do século XX. Sem surpresa, a segunda parte de Bartolo é dedicada apenas à arte deste século. Se, em Reed, México insurgente, Leduc imita a abordagem do documentário da década de 1960, registando a Revolução Mexicana, os protagonistas dos seus filmes ulteriores ficam eles próprios fascinados com as imagens em movimento e a forma como o aparecimento do cinema, da rádio e da televisão traz um sentimento concomitante de história.
Desde Sur sureste: 2604 e Extensión cultural, as câmaras, os ecrãs de cinema, os receptores de rádio e os aparelhos de televisão povoam os filmes de Leduc. Ele atravessa espaços e tempo, mostrando-nos personagens diferentes a escutar a mesma canção. Frida Kahlo vem ao teatro e assiste aos jornais de actualidades sobre a ascensão ao poder de Adolf Hitler perante o aplauso dos espectadores ao seu lado. Em Dollar Mambo, o ecrã cumpre o dever de informar acerca do assassinato de uma bailarina de cabaré. Cobrador lida com os novos tipos de imagens, incluindo as digitais e de vigilância, mas acaba com os ataques de 11 de Setembro a destruir as Torres Gémeas. No cinema de Paul Leduc e nesta retrospectiva, todos esses acontecimentos estão a acontecer em simultâneo.
Boris Nelepo