AUGUSTO M. SEABRA (1955-2024)

Augusto M. Seabra dizia que a programação é uma extensão da crítica. A crítica como modo de estar no mundo, procurando ler as relações entre coisas distantes e próximas, entre as práticas e os gestos, e devolvendo-os em forma de pensamento. Um pensamento sem horários de expediente nem fronteiras disciplinares, mas que se concretiza em escolhas, precisões e tentativas que oferecem a quem quer receber a tessitura das suas dúvidas e paixões. A programação de cinema como extensão da crítica é, para Augusto, uma forma de convocar o mundo para se pensar cinematograficamente — portanto, uma questão de vida.

No catálogo do Doclisboa 2007, o ano em que Augusto começou a construir os Riscos que hoje conhecemos, o primeiro filme que aparece nessa secção é Compilation, 12 instants d’Amour non partagés de Frank Beauvais. A felicidade da organização alfabética dos filmes oferece-nos esta sinopse dos encontros entre Augusto e as coisas. O amor que encontra as suas formas na não retribuição, a música como espaço e matéria de partilha de um mundo que, por si só, é desencontrado, desarticulado, oferece solidões. E a violência disso tudo é um pouco mais doce, se se dá aos outros num encontro fortuito de uma sala de cinema, de um concerto, de uma conversa.

Numa história feita de multiplicidades, por muitas pessoas, Augusto é um dos fundos vitais do Doclisboa. Foi seu programador associado, director de programação, co-director. Mas sobretudo ensinou-nos, aos que tivemos a felicidade de aprender com ele, as alegrias de discutir filmes com o pensamento inteiro. Levar a pele a jogo, pôr o nosso mundo todo em cima de uma mesa partilhada e deixar que a discussão nos oferecesse a forma final do nosso trabalho. Augusto tinha a generosidade de nos enfrentar e desafiar, acompanhando-nos nas delícias de descobrir que programar filmes é, antes de tudo, uma actividade de rigor e prazer profundo. Uma actividade em que os filmes, tudo o que eles são e envolvem, são o fio de prumo e a razão de vida do festival.

Por isso Augusto é inseparável do Doclisboa, mesmo anos depois de decidir que era tempo de sair porque não se queria “eternizar”. Era assim que dizia, mas a verdade é que ainda hoje persiste em cada momento em que um de nós precisa de se relembrar de como fazer o que faz. Da mesma forma, é inseparável da construção de pensamento sobre o cinema, sobre a arte e a cultura em Portugal. Ofereceu chaves de leitura que nos abriram espaços para compreendermos melhor, todos nós, o que fazemos. Pensamos na bela expressão “Geração Curtas”, pensamos nos ciclos de diários e auto-retratos filmados que programou muito antes de essa forma fílmica se tornar quase omnipresente. Pensamos na autonomia crítica com que se afirmou — a soberania do pensamento escolhe tudo, ou não serve para nada. Augusto podia ser autónomo, porque sabia que a transmissão do pensamento é, em si mesma, a sua matéria. Não precisa de retribuição, oferece-se a todos, mesmo que difícil e contraditório.

No filme O Espectador Espantado, de Edgar Pêra, Augusto diz a certa altura que o que mais gosta no cinema é de se surpreender pelo inesperado de um plano que surge relativamente ao que lhe antecede. É este olhar disponível para a surpresa e para apaixonar-se a cada nova cena de um filme que guardaremos e honraremos a cada nova edição do Doclisboa. A força com que Augusto por vezes começava uma conversa levantando a cabeça, pousando a mão na mesa, e dizendo — eu vou defender este filme.

Foi um privilégio ver e discutir filmes consigo, Augusto.

Apordoc e Doclisboa