Justin Jaeckle entrevista Dominique Loreau, realizadora de “Such a Long March”

O teu filme observa um exército gigante de ‘caranguejos chineses’ [Eriocheir sinensis], quando partem do mar para ‘invadir’ o interior da Bélgica. Ao fazê-lo, o filme reflecte sobre tantas coisas através da subtileza e da criatividade da montagem – migração, relações Oriente/Ocidente, ecologia e Antropoceno, vida/morte – tendo os caranguejos como protagonista, tornando-se uma metáfora existencial dentro de um filme cujo enredo quase parece ficção científica. O que te levou a fazer um filme com o Caranguejo Chinês como protagonista, e de que modo o projecto evoluiu da ideia inicial para a obra concluída que vai estrear no Doclisboa?

Um dia, em 2016, ouvi na rádio que caranguejos chineses tinham uma cidade na Flandres e que tinham paralisado os filtros de uma central nuclear. Desafiou-me, porque revelou a fragilidade das construções humanas e levou-nos a uma série de questões prementes; o da coabitação com os animais, a definição de “pragas”, os efeitos da globalização, migração e disfunções no nosso modo de viver e pensar.

Conheci cientistas e pessoas da cidade invadida, que me contaram como tudo aconteceu. Descobri a extraordinária epopeia desses caranguejos e acabei por saber da sua existência.

Queria multiplicar os pontos de vista e filmar as pessoas que encontraram na viagem: um ex-guarda e exilados chineses, que os pintam e comem. Lembrei-me da minha própria relação com os animais em criança, que não colocava entraves, e integrei duas meninas.

O filme foi feito a longo prazo. Queria que sentíssemos o movimento da migração, a teimosia dos caranguejos na superação de obstáculos em paisagens danificadas pelo homem. Filmámos em várias temporadas, o que me permitiu reflectir, imaginar novas situações e fazer pesquisas estéticas em termos de enquadramentos, luz, planos nocturnos, reflexos na água, planos nos rios. Queria aproximar-me gradualmente dos caranguejos, queria que o mundo deles fosse sentido, sem penetrá-lo demasiado para permanecem misteriosos.

Na montagem, quis construir o filme como uma viagem real e imaginária, uma viagem interior que trabalha a emoção e a sensualidade, e que faça pensar.

 

Filmas os caranguejos de forma muito antropomórfica, dando-lhes uma personalidade algures entre o humano e invasores alienígena. A par dos crustáceos, observas alguns humanos, que por sua vez sentem-se documentados um tanto como espécimes científicos, e ajudam o filme a reflectir sobre o significado simbólico desses animais.

Como encontraste os humanos no teu filme, que influência tiveram na sua construção e desenvolvimento?

O ser humano sempre me pareceu tão estranho quanto os outros animais. E também acredito que, apesar de os caranguejos serem radicalmente diferentes, têm coisas em comum connosco, uma sensibilidade, uma consciência, uma certa forma de consciencialização e reactividade ao mundo, para poderem sobreviver. Foi por isso que quis filmá-los com o mesmo cuidado do ser humano, com empatia.

A maior parte da rodagem ocorreu durante o Covid e estava tudo fechado. Foi uma condicionante. As pessoas tinham medo de nós, ou não queriam ver-nos porque só se podia estar com uma pessoa fora do agregado. Era, portanto, necessário lidar com essas dificuldades.

Tinha conhecido o Viktor, o guarda, em Aarschot, quando estava em reperage. A casa onde morava tinha sido invadida e ainda havia caranguejos mortos na cave. Mudou-se três anos depois, mas filmámos a sua visão dos lugares que evocam memórias, imagens, e assim escrevi um texto que condensa os acontecimentos, lido em flamengo por um actor profissional.

Não conhecia as duas meninas, a Loris e a Ihsen, mas o pai delas tinha trabalhado com caranguejos chineses, o que facilitou a rodagem na sua casa, em tempos de Covid. Para deixá-los à vontade e para poder conhecê-los, deixei-os conversar em flamengo, lá fora, com o Viktor, e para descobrirem os caranguejos. Como tinham idades diferentes, tinham aparências diferentes que me interessavam. Mais tarde, propus-lhes situações e deixei que improvisassem, agissem, reagissem e imaginassem como agiriam espontaneamente numa situação dessas. Prestaram-se ao jogo e, como se conheciam bem, podiam ser naturais e até discutir.

Em relação a exilados chineses, conheci a Zhengyi, uma professora universitária chinesa. Conversámos muito e preparamos a filmagem. Ela ensinou-me muito sobre a cultura chinesa e organizou uma refeição de caranguejo, antes do Covid, para os amigos, tal como costuma fazer na lua cheia no outono. Conversaram na sua língua e cantaram as canções habituais nessas refeições.

 

Estudaste realização, montagem e filosofia, frequentaste aulas com o mestre antropólogo e cineasta Jean Rouch, fizeste ficção com ferramentas documentais, também fazes fotógrafia e és autor de romances e textos poéticos. Todos esses elementos surgem em Such a Long March. Que achas implementado no teu filme a partir dessa gama de práticas e experiências? E como?

É difícil responder a esta pergunta porque está tudo misturado. Procuro fazer filmes filosóficos e concretos, alimentados pelo pensamento e observação, pelo olhar crítico e pela sensualidade, por aventuras vivídas e relacionamentos. Preciso confrontar a realidade com todos os seus perigos, surpresas e encontros, mesmo os mais difíceis, enquanto mantenho uma problematização subjacente, senão é só entretenimento.

Tal como na escrita, procuro permanecer na evocação e trabalhar com as emoções, evitando didactismos e certezas. Para “Such a Long Walk” escrevi primeiro um projecto de filme, e como o financiamento era longo, escrevi um livro, “A Few Steps Aside”, lançado em 2020, algures entre prosa e poesia, que por sua vez serviu de base para fazer o filme.

Gosto de me descentralizar e olhar o mundo como um etnólogo. Faço filmes híbridos, entre ficção e documentário, com, espero, a liberdade de Rouch, porque não quero transpor a realidade à minha vontade. Provoco situações que exploram novas potencialidades, que me transformam a mim e aos outros, dando a possibilidade de inventar e improvisar na própria linguagem.

Tenho uma relação um tanto animista com o mundo, por isso filmámos os lugares, as paisagens e os elementos naturais que influenciam a vida dos caranguejos: a luz, a passagem das estações, o movimento da lua, a água, as nuvens, etc., não como meros adornos ou elementos decorativos, mas na devolução da sua importância e vitalidade.

A estética do filme é importante, o que sem dúvida vem do meu interesse pela pintura e pela fotografia: a atenção aos enquadramentos, à luz, às cores, uma leve estilização da realidade.

E trabalhámos a banda-sonora como uma partitura musical.