O filme acontece num fluxo catalisado em grande parte pelo que resulta no encontro entre as tuas intenções e a realidade com que te confrontas. Mudanças, imprevistos, informações que te fogem ou pessoas que acabas por conhecer. Como foste lidando com esse elemento de acaso ao longo do processo de realização do filme?
O facto de ter trabalhado sozinho na rodagem conferiu uma grande liberdade ao gesto de filmar, o que me permitia encarar o estaleiro e a cidade como territórios propícios à improvisação e à deambulação.
O trabalho sobre a forma de um filme é para mim um processo orgânico, que nasce sempre do confronto entre uma ideia e a matéria que tenho diante da câmara.
À medida que as situações de trabalho e o próprio espaço iam mudando eu era obrigado, e estimulado, a mudar a minha maneira de me relacionar com as pessoas e de as filmar. A maior dificuldade era sem dúvida a enorme rotatividade de trabalhadores, que levava a que as pessoas com quem tinha criado relações de confiança desaparecessem de um dia para o outro, e o recurso à voz off veio também dessa vontade de contar as histórias que não tinha tido tempo de filmar.
A lógica gentrificadora que tem alterado profundamente a cidade de Lisboa nos últimos anos baseia-se largamente na exploração de uma força laboral mantida anónima e precária por detrás dos tapumes das obras. Como foi o teu encontro com as histórias e experiências dos trabalhadores que participam no filme?
O encontro deu-se graças ao convite do dono da obra para fazer um pequeno vídeo sobre a construção, que aceitei precisamente por me permitir entrar num espaço vedado que sempre me intrigara. Mas o convite punha um problema ético e prático óbvio, já que empunhar uma câmara num estaleiro, já de si um espaço violento, é um gesto que reforça essa violência. Como tal, gera uma enorme desconfiança e medo, como se fosse uma arma ou um dispositivo de controlo.
Ir diariamente ao estaleiro e passar mais tempo a conviver do que a filmar levou a que se fossem criando relações de confiança. Um estaleiro é, talvez de forma surpreendente, um espaço de uma sociabilidade cativante. Foi assim que comecei a ouvir as histórias daqueles homens e que fiquei com vontade de as contar e de pensar a cidade a partir das várias escalas que a moldam – da escala macro dos fenómenos sócio-económicos à escala micro das narrativas de vida individuais, da abstracção financeira às vidas concretas de quem a constrói e habita.
A cidade já foi personagem de vários filmes teus, como em Birth of a City (2009) ou em Entrecampos (2012). E em outros também, de forma mais indirecta. Que significados tem a cidade para ti e como se constrói no teu imaginário?
Fico feliz com a formulação da pergunta, já que tornar as cidades que filmei em personagens foi exactamente o que tentei fazer desde o início. Não exagero, aliás, se disser que filmar cidades foi a razão que me levou a querer fazer filmes. Há um momento no Caro Diario, do Nanni Moretti, em que ele diz que era capaz de fazer um filme apenas com fachadas de prédios. Eu tinha 13 anos quando vi o filme e não pensava sequer em fazer cinema, mas essa frase ficou-me como uma espécie de mantra ao longo dos anos, ao ponto de sentir por vezes que é a cidade que me sussurra as ideias enquanto caminho – o movimento e o ritmo urbanos, a diversidade de estímulos, o anonimato e o cruzamento de pessoas, os edifícios e os descampados, as camadas invisíveis e as histórias que sob elas se escondem. Tudo isso são outros tantos filmes possíveis a cada saída à rua e o cinema, sem dúvida, a linguagem mais adequada para lhes dar forma.