O GRITO E A ESPERANÇA DO MUNDO NO DOCLISBOA’ 23

Strata Incognita, Grandeza Studio, Locument, 2023

Já é conhecida a programação do Doclisboa’23, que decorre entre 19 e 29 de Outubro, nas salas habituais do festival: Culturgest, Cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e Cinema Ideal. Ao todo, a 21ª edição do Doclisboa mostra 250 filmes de 42 países, entre eles 35 estreias mundiais e 39 filmes portugueses, que revelam o pulsar do mundo e daqueles que o habitam.

O Doclisboa viaja ao interior do cérebro humano pela lente de Werner Herzog (Theater of Thought) e pelas questões prementes do trabalho em The Liberated Broom, Listen to the Story I Was Told, de Coline Grando; mergulha nas memórias de guerras passadas e na guerra actual na Ucrânia (Vyrai, Magdalena Mistygacz, Jakub Stoszek; Waking Up in Silence, Mila Zhluktenko, Daniel Asadi Faezi); nos arquivos do cinema (The Cemetery of Cinema, Thierno Souleymane Diallo), na música (Lovano Supreme, Franco Maresco; Peter Doherty: Stranger in My Own Skin, Katia deVidas) e na dança (Seven Jereles, Pedro G. Romero, Gonzalo García Pelayo).

A conferência de imprensa decorreu esta manhã na Culturgest e contou com a presença de Miguel Ribeiro (Director do Doclisboa), Mark Deputter (Presidente do Conselho Directivo – Culturgest), Marco Guerra (Chefe da Divisão de Acção Cultural – CML), e José Manuel Costa (Presidente da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema). Participaram ainda Wang Bing – por videoconferência –, autor de Man in Black, filme de abertura do festival, e Leonor Teles, realizadora de Baan, que encerrará o certame deste ano. Man in Black é um filme com tanto de belo como de brutal: Wang Xilin, de 86 anos, é um dos compositores clássicos contemporâneos mais importantes da China, um “homem de negro”, com a vida marcada por um sofrimento indizível, e bem assim carregada de compaixão sincera e visível. Baan dá a ver o efeito elusivo do lar, da casa que já não se sente como tal; do tempo, espaço e emoções que, ao implodir, justapõem e esbatem Lisboa e Banguecoque.

“Tentámos que Baan fosse um retrato desta geração de jovens que estão a tentar viver nesta Lisboa bastante caótica e difícil, e de como é que continuamos a viver sentindo que os desafios que temos agora são bastante diferentes daqueles que a geração dos meus pais, por exemplo, enfrentou.”
Leonor Teles

“Em primeiro lugar interessava-me este homem, esta personagem, conhecemo-nos há 20 anos, gosto muito do seu trabalho enquanto compositor. Mas não podemos separar a sua música e a sua experiência pessoal da história da China, está tudo conectado com a realidade política. (…) Falei a Wang Xiling de fazer um filme [Man in Black] sobre ele em Paris, tinha esta visão dele nu em frente da câmara [num teatro vazio]. A estrutura do teatro é muito bonita, impressionou-me, e se o olharmos de cima parece mesmo um antigo túmulo de um imperador da China.” 
Wang Bing 

Durante o encontro com a imprensa foram apresentados filmes da programação que espelham o diálogo permanente entre passado e futuro que caracteriza o cinema: um inédito de Orson Welles em Portugal, Portrait of Gina, e o documentário de Stephen Kijak, Rock Hudson: All That Heaven Allowed, à volta do actor e galã dos anos 1950, celebram a idade de ouro de Hollywood, enquanto que a retrospectiva dedicada ao cinema do período do New Deal norte-americano, programada em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, retrata um país em ebulição. Com os olhos postos no porvir que já está aí, Human, not Human, de Natan Castay, acompanha um homem que passa horas a desfocar rostos no Google Street View por um cêntimo cada, afundando-se num mundo robotizado que levanta a questão de humanidade. E Markku Lehmuskallio mostra as pressões exercidas pelo homem e pela tecnologia no mundo natural em Sounds of the Northern Forest, um dos filmes da retrospectiva conjunta com Anastasia Lapsui que o Doclisboa apresenta.

Competição Internacional viaja este ano por 16 países, incluindo Portugal, e conta com 6 estreias mundiais. Dos 39 filmes portugueses presentes na edição deste ano, 9 integram a Competição Portuguesa e, destes, 7 são estreias mundiais.

Da Terra à Lua traz uma paleta de 23 possibilidades de cinema, da escuridão dos julgamentos das juntas militares da última ditadura argentina revelada por Ulises de La Orden em The Trial; à luz que emana da comunidade algarvia da ilha da Culatra nos anos 1970, filmada por Amilcar Lyra em Areia, Lodo e Mar, e do território da aldeia natal do cineasta guarani Alberto Álvares, que em conjunto com José Cury lembra em Yvy Pyte – Coração da Terra que toda a fronteira é uma invenção. As paisagens com laivos de ficção científica de Strata Incognita, assinada pelos colectivos Grandeza Studio e Locument, são tão pungentes quanto as violentas tradições das forças militares bielorrussas que conhecemos em Motherland, de Alexander Mihalkovich e Hanna Badziaka, ou as histórias de violência captadas pela lente de Danielle Arbid numa rememoração da guerra civil do Líbano (A KillerAlone with War). Da Terra à Lua mostra ainda filmes de Nafis Fathollahzadeh, Maxime Martinot, Uma Celma, Julien Elie, Veljko Vidak, Coline Grando e Nicolas Peduzzi.

No coração pulsante do Doclisboa, os 21 filmes das secção Heart Beat revelam – além dos já anunciados filmes dedicados a Luis Ospina, Joan Baez e Luis Miguel Cintra – Let the Canary Sing, retrato íntimo de Cyndi Lauper assinado por Alison Ellwood; Big Bang Henda, de Fernanda Polacow, viagem pelas criações e reflexões do artista angolano Kiluanji Kia Henda; as raízes do flamenco espanhol em Seven Jereles, de Pedro G. Romero e Gonzalo García Pelayo; ou a história de um grupo de atletas queer que decide honrar os excluídos e mostra como fazê-lo em Life Is Not a Competition, But I’m Winning, de Julia Fuhr Mann. Heart Beat mergulha também na vida e obra da extraordinária Agnès Varda (Viva Varda!, Pierre-Henri Gibert) e mostra ainda filmes de Jan Moss, Wincy Oyarce, Pedro Florêncio, Patricia Allio e Justine Harbonnier.

Na secção Riscos, às já anunciadas obras dos cineastas convidados Mika Taanila e Paula Gaitán junta-se o verdadeiro acontecimento que é Frente a Guernica, novo filme de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi (já falecida), projecto idealizado em conjunto, como tantos outros da dupla, e que, nas palavras de Gianikian, é um “trabalho político, artístico e histórico sobre a violência do século XX”. Na produção nacional, Edgar Pêra revisita a obra e os heterónimos de Fernando Pessoa, num surpreendente thriller psicológico-literário: Não Sou Nada – The Nothingness Club. Destaque ainda para Revolution+1, onde o rebelde do cinema subversivo Masao Adachi faz a reconstrução ficcional do assassinato do antigo primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, e para os trabalhos de Luciana Fina, Peter Schreiner ou do colectivo Terrorismo de Autor, peças de uma secção sempre atenta à irreverência e à experimentação.

Incluída na secção Riscos, Shadowboxing é uma novidade desta edição, com curadoria de Cíntia Gil e de Jean-Pierre Rehm, e desenha uma possibilidade de mundo – uma mundividência movida por um interesse determinante e preciso no cinema, imaginada por dois programadores que dialogam em imagens e movimentos – de Crashing Waves (Lucy Kerr) a The Connection (Shirley Clarke), a Notes for a Film (Ignacio Agüero).

Dos Verdes Anos, lugar por excelência dos jovens realizadores contemporâneos, destacam-se 19 estreias provenientes de 15 países e ainda a colaboração com a Universidade de Artes de Helsínquia, janela privilegiada para espreitar o cinema finlandês de hoje.

O programa educativo abcDoc aposta mais uma vez na força do documentário como ferramenta pedagógica e ponto de partida para conexões com outros mundos. Nebulae, programa dedicado à indústria e ao networking no festival, decorre de 19 a 24 de Outubro e promove actividades e encontros que fomentam o desenvolvimento, criação, produção e divulgação de diferentes Constelações de cinema independente. Juntos completam uma programação e um espaço de intervenção amplos a que o Doclisboa se propõe a cada ano.

Todos os detalhes da programação, júris, secções competitivas e prémios (entre elas o novo Prémio Direitos e Liberdades) estão já disponíveis em doclisboa.org. As bilheteiras físicas da Culturgest, Cinema Ideal e Cinemateca, e online em Blueticket e Ticketline, estão oficialmente abertas.

Em Outubro, o mundo inteiro cabe em Lisboa.