Riscos
Esta edição de Riscos é marcada pelo desaparecimento de Augusto M. Seabra, que, em 2007, pensou e criou as bases para um programa que se tornou central no Doclisboa. A vitalidade desta secção nasce da irreverência e do fundo intempestivo das práticas de programação que Augusto nos transmitiu e que encontramos num dos primeiros filmes por ele programados aqui: Compilations, 12 instants d’amour non partagé, de Frank Beauvais.
Riscos é um lugar onde filmes, formas e cineastas singulares entram num diálogo simultaneamente composto por e para além do tempo. Examinando gestos cinematográficos que nos proporcionam uma visão panorâmica do contemporâneo, este programa assenta num interesse pela profundidade e curiosidade cinematográficas e num desejo de encontrar parentescos e tensões entre as diferenças, proximidades e distâncias apresentadas pelos filmes.
A invenção interrogativa da carta de Un Âne ao último filme de Chantal Akerman ou a re-perspectivação do derradeiro filme de Albert Lamorisse no Irão, em Lovers’ Wind, podem ser uma forma de entrar num programa em que o cinema reinventa a sua medida através da soberania de cada plano, corte, movimento. É esse o gesto de Dominique Auvray, montadora que é antes de mais uma apaixonada por aquilo que o cinema pode elevar a uma temporalidade incapturável.
A conversa também pode partir de afinidades ou elementos partilhados – pensemos no uso que Courtney Stephens e Mariano Llinás fazem do cinema como ferramenta para transformar processos íntimos de luto em espaços metaficcionais de pensamento, através dos quais dão novos propósitos a imagens anteriores ao mesmo tempo que abrem um espaço de sentido que só se materializa verdadeiramente através de nós, os espectadores. Dar novos propósitos ou aprofundar usos antigos e vestígios de intenções, factos antigos que parecem cada vez mais significativos. O passado e o presente dão nova forma ao nosso sentido de tempo comum, uma das principais preocupações de Declan Clarke ao criar um espaço para o surgimento de uma história de amizade e colaboração, a de Samuel Beckett e Walter Asmus. Outra porta de entrada no programa deste ano, repercutindo a retrospectiva Back to the Future, poderá ser sob o signo de espaços beckettianos, como os de Small Hours of the Night, de Daniel Hui.
Reaproveitando imagens e sentidos do passado, hierarquias anteriores de tempo e espaço, reflectindo sobre o que existe para além e em torno da brevidade com que protagonistas habitam um palco. O último filme de Andrei Ujică vai mais longe na sua obsessão de sempre e produz uma cápsula do tempo que precisava de uma operação cinematográfica para ganhar vida: uns EUA que, durante um fim-de-semana, em 1965, se tornaram invisíveis enquanto os Beatles chegavam a Nova Iorque e se tornavam no centro da Terra. Como seria uma cápsula do nosso presente? Qual seria o seu regime audiovisual? A dupla cricri sora ren (Christian von Borries + IA) escolheu como território um eixo algo crítico na actualidade – a China pós-comunista, a Rússia de Putin e Berlim – para nos submergir violentamente na vertigem das próprias imagens. Escolhendo os seus próprios diários em vídeo no computador e a sua cidade como ponto de vista sobre a história, Hans-Jürgen Syberberg, passados quase trinta anos, traz-nos um novo filme. Uma obra miraculosamente íntima que de alguma forma encerra a voracidade do passado e as contradições do presente. Phil Solomon mergulha no mais solitário dos lugares, a Liberty City de Grand Theft Auto, e encontra um olhar através do qual faz um misterioso voo existencial , dialogando, neste programa, com o conto de fadas contemporâneo de Virgil Vernier no Mónaco.
Do passado ao futuro, a família parece ser uma linha tangencial, que abre alguns dos abismos mais fascinantes. No 100.º aniversário de Robert Frank, revisitar Conversations in Vermont revela uma graça e uma lucidez que parecem ainda mais pertinentes hoje em dia. Harmony Korine, em Aggro Dr1ft, coloca o amor familiar no centro de uma violenta peça operática com traços shakespearianos e uma insolência formal que desafia qualquer tentativa de classificação.
No outro extremo, Pierre Creton e as suas elegias rurais. O seu trabalho como cineasta, agricultor e jardineiro resulta num universo cinematográfico extraordinariamente particular. Creton reconstrói o mundo à sua volta com um tom próximo, delicado, frontal e paciente, uma atitude cinematográfica, um estilo. Em Riscos, guiados por Creton, observamos o cinema como um campo onde se cruzam e pastam numerosas espécies. Um lugar onde podem crescer múltiplas formas de imaginar o mundo.
Cíntia Gil, Justin Jaeckle