Nos seus filmes, Lapsui e Lehmuskallio investigaram e documentaram amplamente a vida de, pelo menos, nove povos indígenas do Norte. A retrospectiva levará os espectadores numa viagem com os cineastas pelo Canadá, Alasca, Finlândia, Noruega, antiga União Soviética e actual Rússia, Gronelândia, Austrália e até Vietname. De modo a facilitar a navegação pela sua filmografia extensa, que permanece em grande medida desconhecida em Portugal, parece importante dividi-la em ciclos e tentar desenhar um mapa aproximativo que seja uma companhia fidedigna nesta viagem cinematográfica.
Sabemos muito bem que quase todos os grandes cineastas são consistentes no seu trabalho. Isso é particularmente verdade no caso de Lapsui e Lehmuskallio, cujo projecto cinematográfico com cinquenta anos é admiravelmente coerente. Cada novo filme dá seguimento ao anterior, nascendo literalmente do que se fez e descobriu. O seu cinema tem uma linha de pensamento clara, é uma reflexão cujo desenvolvimento temos o prazer de acompanhar. Em meados dos anos 1990, descobriram a forma fragmentária, que transforma cada filme num mosaico, num emaranhado de cenas, curtas-metragens, canções e poemas. Poderia dizer-se que a totalidade da obra da dupla de realizadores é um só filme dividido em 29 fragmentos, nos quais continuam a olhar de perto a humanidade e a colocar questões: o que significa viver, ser humano, que papel pode a arte desempenhar nas nossas vidas, como encontrar a humildade de ser igual aos outros – pessoas, animais, natureza. O paraíso está realmente perdido?
É certo que a minha forma de classificar estas obras e dividi-las em ciclos não é definitiva, uma vez que os filmes estão interligados e poderiam facilmente passar de uma categoria para outra. O próprio Lehmuskallio propõe um princípio de divisão muito simples em apenas dois períodos: antes de conhecer Anastasia (quatro longas e quatro curtas, portanto) e depois (o resto dos filmes, ainda que nem sempre sejam os dois creditados como co-realizadores). Ainda assim, tomarei a liberdade de sugerir esta forma de navegar pela sua filmografia:
- um ciclo de filmes sobre florestas e vida selvagem, a relação entre humanidade e natureza: Pohjoisten metsien äänet (1973), Tapiola (1974), Mies jolla on kahdet kasvot (1974), Elämän tanssi (1975), Korpinpolska (1980) e Uhri – elokuva metsästä (1998);
- filmes sobre os lapões, um povo indígena da Finlândia: Mies jolla on kahdet kasvot (1974), Skierri – vaivaiskoivujen maa (1982) e Saamelainen (2007);
- a saga nenetse: a) a trilogia de documentários formada por Poron hahmossa pitkin taivaankaarta… (1993), Kadotettu paratiisi (1994) e Jäähyväisten kronikka (1995); b) a sequela independente de Kadotettu paratiisi: Elämän äidit (2002); c) a trilogia de filmes de ficção feita em língua nenetse pela primeira vez e baseada em memórias de Lapsui: Seitsemän laulua tundralta (2000), Jumalan morsian (2003) e Sukunsa viimeinen (2010); d) Nedarma matka (2007), uma síntese poética da cosmologia nenetse que resulta de 18 anos de trabalho com este povo;
- uma trilogia filosófica sobre a humanidade, o seu lugar na Terra e o papel da arte e do sagrado na vida: Maan muisti (2009), Yksitoista ihmisen kuvaa (2012) e Pyhä (2017);
- filmes sobre outros povos do Norte não directamente dedicados aos nenetses ou aos lapões: Inuksuk (1988), Anna (1997), Uhri – elokuva metsästä (1998), Fata Morgana (2004), Tsamo (2015) e Anerca, elämän hengitys (2020);
- por fim, os seus filmes seminais, que nortearam as reflexões sobre a natureza da arte e a sua importância na vida humana: Sininen imettäjä (1985) e o par Minä olen – Elokuva tundralla asuvien ihmisten taiteesta: Esihistoria ja kohtaaminen (1992) e Minä olen – Elokuva tundralla asuvien ihmisten taiteesta: Nykytaide (1992).
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Boris Nelepo