Aqui chegados, que fazer?
Aqui chegados, que fazer? A pergunta, que assola muitos de nós e que nos deveria assolar a todos quando olhamos o mundo, mas também o país, resiste a todas as respostas fáceis. O cinema não é certamente a solução para a tragédia da guerra, da carnificina, do genocídio de um povo, para a ascensão dos nacionalismos e dos novos fascismos, para a crise ambiental que seca até as ideias. Mas o cinema é, ou ao menos pode ser, um lugar para pensar o mundo e pensar sobre o mundo – não apenas essa expressão artística de reflexo do real, sempre enganadora, mas uma ferramenta ímpar de indagação e investigação das nossas misérias e dos nossos sonhos e esperanças.
Aqui chegados, no Doclisboa, continuamos a acreditar no poder transformador do cinema enquanto experiência comunal (a sala de cinema, sempre!) e, depois, individual. Continuamos entusiasmados com essa busca incessante pela singularidade – de cineastas, gestos, olhares e projectos singulares – e por colocar o cinema de tempos idos em relação com o presente. Continuamos empenhados na defesa do cinema e em particular do cinema português. É assim que, crentes na força de uma proposta original de programação, apresentamos esta edição de 2025.
E que proposta é essa? A ousadia das obras da Competição Internacional, com abordagens muito diferentes e reveladoras da potência do que o cinema pode ser. A força diversa dos filmes da Competição Nacional, numa convergência de linguagens, olhares e gerações. O programa dos Riscos, construído numa procura da relação entre os filmes, o que eles trazem e o cinema enquanto matéria de pensamento e articulação do mundo. Este ano, apresentam-se de novo relações entre filmes de diferentes tempos (de 1896, com o cinema de Gabriel Veyre, aos dias de hoje), regimes e práticas. Trương Minh Quý com Nicolas Graux (Vietname, Bélgica) e Hala Elkoussy (Egipto) são os realizadores convidados, apresentando obras de grande fôlego artístico e político, que desafiam tradições e renovam o nosso imaginário. O Shadowboxing, colaboração entre Cíntia Gil e Jean-Pierre Rehm, regressa com três sessões inspiradas pelo filme palestiniano Two Meters of This Land, de Ahmad Natche.
Em Da Terra à Lua, um caleidoscópio do mundo e alguns regressos importantes ao Festival. Desde logo os de Ross McElwee (Remake) e Želimir Žilnik (Eighty Plus), dois decanos a quem dedicámos retrospectivas no passado e que, agora, voltam com filmes pessoais e ternos sobre a família e o envelhecer. Mas também Lucrecia Martel com Landmarks e Laura Poitras com Cover-Up, olhares críticos e necessários sobre as realidades dos seus países. De Portugal, um momento incontornável da programação: As Brigadas Revolucionárias na Luta Contra a Ditadura, filme-documento de Luiz Gobern Lopes sobre os movimentos anti-fascistas durante o Estado Novo.
As artes e os seus protagonistas são a fonte do conjunto de filmes que apresentamos em Heart Beat, com três homenagens a merecerem destaque: as que fazemos a Robert Wilson, David Lynch e Luciano Berio, mestres já desaparecidos, mas que continuam bem vivos. Ainda a viagem de Solveig Nordlund ao baú do Teatro da Cornucópia e filmes que espreitam a vida e obra de ícones como Madonna ou Jeff Buckley. Finalmente, o pulsar iniciático de quem se aventura no cinema enche a secção competitiva Verdes Anos e convive com o gesto de liberdade dos filmes de William Greaves, cineasta afro-americano a quem dedicamos a nossa retrospectiva conjunta com a Cinemateca Portuguesa.
Ao todo, são mais de 200 filmes, entre títulos novos e obras resgatadas ao passado, sempre à procura do seu público, porque para isso foram feitos – para serem vistos, amados, discutidos, vividos. Um fio condutor percorre grande parte da programação: a decisão de fazer uma pausa e olhar, de revisitar o que foi vivido para imaginar o porvir. Estes filmes não fogem do conflito ou da memória; antes, acolhem-nos, encontrando no cinema uma forma de percorrer história, cultura e ideias e convidando-nos – num gesto de criatividade e resistência – a continuar a habitar este mundo.
Aqui chegados, continuamos a acreditar na força e no papel artístico e político do cinema, na força e no papel artístico e político de um festival como o Doclisboa – da sua programação ao Nebulae, espaço de indústria e ponto de encontro de tantos profissionais; do serviço educativo que oferecemos em conjunto com a Apordoc, nossa casa-mãe, ao laboratório de projectos Arché, que continua a apoiar o cinema em que acreditamos. Aqui chegados, vemos também o Doclisboa como uma festa, cientes de que a grande festa dos nossos tempos é resistir. Os dias não estão para grandes optimismos. Porém, com a força de uma equipa maravilhosa e o apoio fundamental de todos os nossos parceiros, duas ideias resumem bem aquilo que nos anima e ao Festival que agora entregamos à cidade para que dele usufrua: esperança e desejo de futuro. Viva o Doclisboa. Viva o cinema.
Hélder Beja
Director do Doclisboa