A secção Riscos prossegue sob o mote trazido por Augusto M. Seabra: a programação é a continuação da crítica por outros meios. Este programa tenta imaginar relações entre filmes, sem recusar o que o cinema nos propõe hoje enquanto produção cultural do seu tempo, mas criando movimentos de desvio, zonas de respiração que permitam um olhar crítico que nasça da matéria que os próprios filmes nos trazem.
Se estes são corpos vivos que nos confrontam e detêm é por trazerem a possibilidade do inesperado, do despropositado, mesmo do maldito, do mal querido, a força da insolência. É esse desacerto, próprio de toda a obra que se instala nas brechas dos discursos e das formas institucionalizadas, que permite que o cinema opere no mundo para além daquilo que o mundo espera dele. Se as práticas do cinema se foram tornando possíveis em condições e circunstâncias anteriormente inacessíveis, o mapa das cinematografias foi-se transformando e aquilo que dantes seria um cinema minoritário, mesmo de combate contra formas hegemónicas, criou uma espécie de zona central que se sustenta a partir da produção discursiva de consensos, povoada por formas prescritivas. O cinema entendido enquanto problema de representação, através do qual os poderes negoceiam e resolvem as suas próprias insuficiências, apresenta-se, hoje, como uma espécie de remédio, rápido e mais ou menos superficial, para o contentamento de moralismos e ímpetos de higienização da nossa vida em comum. Regimes audiovisuais que bebem tanto do combate e da militância como da construção do íntimo foram capturados a partir de lógicas apaziguadoras, consoladoras, consumistas, populistas.
No entanto, tudo isto não parece mais do que uma espécie de regime de indulgência diante da complexidade das coisas. Perante as agressões oportunistas e cínicas que rebentam com os pilares em que acreditávamos poder sentar-nos a pensar, como podemos inventar novos pensamentos? Como podemos resistir à mudez a que nos estamos a condenar? Quem volta de Gaza?
É a partir deste horizonte problemático – doloroso, mas também persistentemente em busca de pontos de ligação com um desejo de cinema – que este programa se foi desenhando, acreditando que os filmes testemunham a sua frágil incompletude perante o mundo. É perante a impotência do cinema para explicar a vida que nos surge a sua maior virtualidade – a capacidade poética de abrir espaços de pensamento onde este parece calhau opaco em vez de movimento vivido. A possibilidade de transformação do mundo não é um assunto de representação em cinema, antes um desejo, uma energia que se produz no nosso encontro – crítico – com eles.
Comecemos por Shadowboxing já que, de certa forma, tudo o que foi descrito acima não é mais do que um movimento insistente de luta com a própria sombra. A Palestina como horizonte ético, o genocídio do seu povo como abismo no coração de todo o gesto poético. Como escreveu Jean-Pierre Rehm, com quem se pensou este Shadowboxing, “Como falar de um aqui sem um agora?”. O desenrolar do tempo e da vida, o seu sentido trágico, cristaliza-se nos espaços e nos objectos e dá lugar a fantasmagorias, dissonância entre os sonhos do que seria e as experiências do que efectivamente foi. Duas sessões de curtas metragens, incluindo os novos filmes de Marko Grba Singh (co-produção entre Sérvia e Kosovo), Heinz Emigholz, Assaf Gruber, Ivan Marković, Camilo Restrepo e Jorge Caballero, Micah Weber e George Clark, reflectem essas dissonâncias.
Este cinema que responde com desejo lúcido à brutalidade do presente está na sessão em que o filme de Sophie Roger dialoga com Us & Them – um filme sem autor e sem país, que recusa nomear a própria origem e, em vez disso, oferece corpo e voz à descrição da violência que o torna um gesto inaceitável. As formas de vida que se definem como monstros perante um presente intolerável, são princípios revolucionários: exibem a violência que as condiciona e as alternativas que anunciam. O filme de Margarita Ledo Andión, Prefiro condenarme, ou as personagens maravilhosas dos filmes de Hala Elkoussy inventam princípios de imaginação política.
Os planos fixos de Declan Clarke em One Power for All the Land ou as torrentes e os blocos maciços da barragem de Ardnacrusha a preto e branco libertam a potência de um cinema que, constituindo um tempo anacrónico, opera directamente sobre a construção da condição contemporânea a partir do sonho colectivo de uma nação soberana. Em Series of Actions, de Chanasorn Chaikitiporn, a criação do Arquivo Cinematográfico da Tailândia revela o cinema como o repositório dos fantasmas que dão corpo ao imaginário colectivo que constitui a autonomia de uma comunidade.
É justamente nas placas tectónicas deste imaginário colectivo que se instalam os filmes de Trương Minh Quý, tanto a solo como em co-realização com Nicolas Graux. Chegam-nos como transmissores de sinais discretos, de vislumbres de virtualidades visuais e sonoras que persistem nas almas das coisas, portadores de uma oferenda cada vez mais rara: um cinema experiencial, próximo da possibilidade do encontro sensível.
As imagens de Gabriel Veyre foram-nos propostas pelo filme de Javier Rebollo, En la alcoba del sultán, através do qual se recupera e afirma uma relação aventureira e mágica com o fílmico. Veyre teve o privilégio de filmar as coisas pela primeira vez, na invenção do cinema. Os seus filmes revelam que o cinema é um modo específico do encontro que nos abre às delícias da nossa própria incapacidade de possuir o mundo. As suas imagens surgem não como artefactos do passado, mas como elementos necessários ao nosso tempo: o olhar autónomo, aberto e sensível como princípio crítico de reconstrução do mundo.
— CÍNTIA GIL