Apelidado pelo historiador afro-americano Donald Bogle como “o decano dos cineastas independentes”, William Greaves (1926 -2014) é um dos nomes mais injustamente esquecidos no panorama do cinema moderno de estilo documental. Este nova-iorquino de gema iniciou a sua carreira na representação, chegando à Broadway, tornando -se um dos primeiros membros do Actors Studio, dando formação em oficinas de “method acting” no Canadá e Estados Unidos e, como um apaixonado pela música, cantando e compondo. Um multifacetado “Blues Boy” (nome da personagem que interpreta na peça Garden of Time, encena- da pelo American Negro Theatre em 1945) que, por causa da sua presença nos palcos e no grande ecrã, foi ganhando nome na praça e até popularidade junto do público. Não obstante, cedo percebeu que, para ter uma voz própria e actuante, sendo um artista negro a viver nos Estados Unidos da América, tinha de controlar minimamente os meios de produção, seja enquanto realizador, seja enquanto produtor. Contou: “[a]pesar de me dizerem que era uma ideia ridícula um homem negro prosseguir uma carreira como realizador e produtor de filmes, estava bastante confiante de que iria ter sucesso” (citado em Reel Black Talk: A Sourcebook of 50 American Filmmakers, de Spencer Moon).
No início dos anos 1950, fora de portas e mais concretamente no Canadá, começou a sua carreira como montador e realizador num sistema de produção dedicado ao documentário fundado por John Grierson, colaborando com nomes maiores do cinema directo desse país e figuras de proa da Unidade B do National Film Board, como Terence Macartney -Filgate e Stanley Jackson. O filme com que aí afirmou a sua voz autónoma foi Emergency Ward (1959), obra rodada integralmente nas urgências do General Hospital em Montreal. Projectou-se a partir deste filme intenso e, já regressado aos Estados Unidos desde o ano de 1960, no âmbito de um cinema de estilo documental que nunca deixou de experimentar criticamente com o artifício da encenação e do role play.
Foi um destemido cineasta de vários talentos e de várias missões, ainda que especialmente sensível à situação da comunidade afro‑americana. Via-se como um divulgador e um formador, investido na promoção de exemplos de resistência e na identificação das origens do racismo e da discriminação, sem nunca esquecer as suas próprias raízes, mas, sob influência do pan-africanismo, também procurou dimensionar essa experiência pessoal a um nível global, a partir do Harlem da sua infância para o mundo inteiro. Foi um olhar vigilante e crítico das manifestações mais silenciosas de discriminação tanto na vida social e cultural como no próprio local de trabalho. Neste particular, veja-se ou descubra-se finalmente uma obra tão poderosa como In the Company of Men (1969), em que o racismo no local de trabalho é objecto de um “jogo psicodramático” que coloca negros e brancos frente a frente, expondo as suas razões e resolvendo as suas “diferenças”.
Ao mesmo tempo, foi um cineasta de pendor experimental, como se atesta no filme de culto Symbiopsychotaxiplasm: Take One (1971), ovni cinematográfico (re)descoberto tardiamente e que influenciou de maneira quase secreta realizadores importantes do cinema independente norte-americano, a começar por Steven Soderbergh, que foi um dos produtores executivos da sequela, Symbiopsychotaxiplasm: Take 2 ½ (2005), a derradeira obra de Greaves. Mas este também foi um homem de causas e de uma energia inesgotável, possuidor de uma capacidade notável para se adaptar a diferentes realidades, meios ou modos de expressão. Foi o primeiro rosto negro a apresentar e a produzir o magazine televisivo Black Journal, inicialmente concebido por brancos, e assinou vários documentários pedagógicos sobre alguns dos heróis maiores da história negra, como Frederick Douglass, Ida B. Wells e Ralph Bunche.
Documentou ainda, de maneira directa e engajada, quer dizer, bem presente, alguns dos acontecimentos de massas que mais agitaram o panorama social e político. Entre eles, destaca-se a Convenção Política Afro-Americana realizada em Gary, Indiana, em 1972, durante a qual ficou para a eternidade o discurso de Jesse Jackson, em boa hora captado pela câmara de Greaves, numa obra em que gozou da assistência do filho, David, e que foi realizada num período em que já era estreita a colaboração com a sua mulher e produtora dedicada, Louise Archambault Greaves (1932 -2023), com quem fundou, em 1963, a William Greaves Productions. Clamava, então, Jesse Jackson on camera: “Sou um homem negro e quero um partido negro”. Antes disso, havia disparado: “Para os democratas negros, republicanos negros, Panteras Negras, muçulmanos negros, independentes negros, empresários negros, profissionais negros, mães negras que vivem do apoio social, que horas são?” “Hora da Nação! [Nationtime!]”, gritaram de volta, em jeito de resposta, as pessoas presentes no auditório (foram cerca de 10 000 ao todo a participar na Convenção). Sim, é hora de vermos Nationtime (1972) e de o vermos na versão restaurada que foi supervisionada por Louise Greaves em 2018, já na qualidade de principal guardiã do legado do marido.
O ciclo que se organiza em colaboração com o Doclisboa, neste mês de Outubro, serve de amostra exaustiva desta obra extensa, mas pouco vista, dando conta da complexidade e variedade de propostas contidas no cinema de um homem renascentista que, para parafrasear o título do livro William Greaves: Filmmaking as Mission, editado por Scott MacDonald (co-programador deste ciclo) e Jacqueline Najuma Stewart, encarava a realização como uma missão de vida e o cinema como modo de questionamento da sociedade. Com excepção de In the Company of Men, mostrado na sessão de antevisão desta edição do Doclisboa, no passado mês de Julho, nenhum filme de Greaves teve, até agora, passagem nas salas da Cinemateca.
— LUÍS MENDONÇA
Co-curador da retrospectiva