Joana de Sousa entrevista Welket Bungué, realizador de “Memória”

O filme cruza diferentes registos textuais, do arquivo de um discurso de Amílcar Cabral à poesia. Como foi pensada a relação entre estes diversos elementos?

Há muito tempo que eu queria trabalhar com materiais de arquivo, especialmente, com excertos que involvam a presença de Amílcar Cabral. Eu sabia que reencenar, ou reposicionar citações tão potentes quanto as de A. Cabral, trazendo-as para um contexto posterior ao tempo da Luta de Libertação da Guiné -Bissau, traria camadas compostas de transversalidade em tudo o que pudesse ser visto como interpretação do autor. A poesia ilumina o filme, porque há um insurgente desdobramento de sentidos, que propõe um salto intergeracional entre as personagens (Joãozinho da Costa e Aliu Santy) e os desígnios que os identificam, e ao combinar a voz feminina de uma jovem guineense oradora-narradora (Suaila Cá), com imagens contemporâneas de uma Guiné colorida e celebrativa. Se isto for poesia, diria que todos esses elementos vêem-se sensivelmente influenciados por um recorte dramatúrgico que é adensado com o discurso de A. Cabral. Mas como podemos ver pela linguagem fílmica, eu e o Duarte Lima não estávamos preocupados em recriar um filme que fosse convencional ao género de cinema documental. Este é o terceiro filme que fazemos juntos, e decidimos imaginar uma história viva, uma forma de “proto-narrativa” para um filme feito com pessoas reais, num território real, com implicações reais e transversais aos seus autores. Mas não olhem para isto como se se tratasse apenas de um filme. Antes oiçam o que diz esta terra (Guiné-Bissau, Portugal).

 

Que significado comporta a dança e o movimento neste filme e como é que ela foi desenvolvida com o Joãozinho da Costa?

O Massacre de Pindjiguiti aconteceu a 3 de Agosto de 1959, ali na região do porto velho de Bissau. Ali, no coração da capital Bissau, foram mortos a tiro pelos oficiais de guarda coloniais portugueses cerca de cinquenta Bissau-Guineenses, porque a administração colonial não tolerava que aquelas pessoas reclamassem por melhores condições de trabalho. Esse marco fatídico deixou Cabral sem mais alternativas de negociar com o cólon senão partir para a luta armada, tendo ele proferido a contragosto a fratricida frase “Nós nunca confundimos o “colonialismo português” com o “povo português”. A nossa luta é contra o colonialismo português.” Estes dados históricos fizeram-me entender que precisava de mostrar o centro histórico de Bissau (Bissau bedju, ou Bissau Velha) sob uma perspectiva performática. Isto é, através de um escopo fílmico em que o corpo do performer e dançarino Joãozinho da Costa pudesse interagir com a espacialidade, a memória, e a arquitetura daquele lugar. É nesta lógica de transformação do espaço através da gestualidade e da interação do corpo, com os elementos exteriores a si, que baseámos a improvisação de movimentos que levaram à composição coreográfica que no filme nos diversos momentos em que acompanhamos o personagem em trânsito pela cidade de Bissau. É importante citar que, neste universo o galo simboliza toda a complexidade de factores que influenciam a vida do guineense, e isso também marcou muito as orientações que dei ao Joãozinho para que pudéssemos determinar uma formação de movimentos que nos permitisse identificar um corpo que dança, mas que também é um corpo transmutacional – e por isso, resiliente.

 

Em relação à Guiné-Bissau, que papel achas que tem o cinema na recuperação da memória colectiva do país?

Eu acredito que o cinema que eu pratico, é um cinema de crença. É um cinema que não resulta se não for discutido, e é por isso que me entendo mais como artista transdisciplinar, e não especificamente como artista de cinema. O que quero dizer, é que para mim o cinema é apenas mais uma forma de gerar possibilidades de diálogo, e consequentemente, de confrontação. O diálogo é o caminho para a restauração de verdades omitidas pela história contada sob a perspectiva dos estrangeiros no território africano. O diálogo transparente é o único caminho para a transmissão de conhecimentos honestos acerca das particularidades que fazem com que a tolerância não seja ainda hoje verdadeiramente praticada na esfera político-social das convenções pro-democráticas, que estão na base dos ideais de liberdade (individual, e colectiva) que orientam o mundo ocidental. O diálogo enquanto prática social, pode fazer com que toda a forma de expressão artística, encontre na sua realização um potencial que institui uma relação que reconhece as diferenças, e que fortalece e aprofunda essas mesmas diferenças. E como estou aqui a fazer considerações acerca de arte, entendo por isso que a poesia transforma todas as formalidades em sensibilidades, sensibilizando-nos. É nesta perspectiva que eu vejo o cinema, e é nessa perspetiva humanista que o cinema pode sim, efetivamente, contribuir para a recuperação de valores que alicerçam a memória e a soberania colectivas de um país como a Guiné-Bissau.