Justin Jaeckle conversa com Éric Baudelaire (Agosto 2022)

Desde que ganhou o Prémio Especial do Júri no Doclisboa com a sua primeira longa-metragem, The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years Without Images (2011), o cineasta e artista Éric Baudelaire tem sido uma presença regular no Festival, que apresentou os seus filmes Un Film dramatique (2019), Also Known as Jihadi (2017), Letters to Max (2014) e The Ugly One (2013). A vigésima edição do Doclisboa tem Baudelaire como Realizador Convidado na secção Riscos, exibindo os seus dois filmes mais recentes, When There Is No More Music to Write, and Other Roman Stories (2022) e Une Fleur à la bouche (2022), a par de Humain, trop humain (1973), de Louis Malle, que Baudelaire escolheu programar.

 

Dois projectos desenvolvidos em paralelo
Normalmente, trabalho em vários projectos ao mesmo tempo. Ajuda-me a nunca me sentir encalhado. Se uma ideia se esgota ou parece errada, mudo para outro projecto e, frequentemente, os problemas resolvem-se por si. A peça de Pirandello é o meu primeiro desejo cinematográfico. Descobri-a quanto tinha vinte e poucos anos e desde então que a quis adaptar ao ecrã. Tive finalmente uma oportunidade para a desenvolver, filmar e montar enquanto trabalhava em When There Is No More Music to Write. Os filmes serem radicalmente diferentes na forma e no processo tornou prazeroso trabalhar em ambos ao mesmo tempo. Essa variedade de experiências é que torna o cinema tão fascinante para mim.

Ficção
Desfrutei da dinâmica da ficção pura uma vez antes, com The Ugly One [Doclisboa 2013], e desde então que estava desejoso de regressar ao diálogo, trabalhar com actores e encenar. O texto original de Pirandello é brutalmente comovente. Mas é curto e muito teatral. Trazê-lo para o ecrã exigia alguma transformação. A Anne-Louise Trividic adapta textos lindamente. Gostei de Intimitée [Patrice Chéreau, 2001], que ela escreveu combinando elementos de vários contos de Hanif Kureishi. Fiz-lhe uma proposta: trabalhar a partir do texto original de Pirandello e imaginá-lo precedido de uma sequência de 30 minutos de material documental puramente observacional que eu filmara num mercado de flores imenso. Ela viu as gravações e reescreveu a primeira parte do texto de Pirandello por completo, mantendo a segunda quase palavra por palavra. O resultado é um díptico documentário/ficção que põe em confronto – ou antes, junta – duas linguagens cinematográficas, duas possibilidades fílmicas que são frequentemente pensadas em separado.

O personagem de Oxmo Puccino
Há muitas maneiras de observar a realidade e passar essa experiência ao público. O homem que tem uma flor na boca, interpretado por Oxmo Puccino, deambula pelas ruas da cidade o dia inteiro, observando as pessoas a trabalhar, observando minuciosamente os seus gestos. O filme apanha-o à noite, num café de estação de caminhos-de-ferro, onde encontra uma alma solitária à espera do comboio da manhã. O homem retém o viajante com o relato do que viu e a intensidade da sua percepção de que o tempo se está a esgotar. Com cada um destes ciclos de dia e noite, o homem procura agarrar- me à vida e retardar o inevitável. Para mim, a peça de Pirandello é uma alegoria do cinema, na sua essência, e a nossa adaptação do texto guiou-se por essa premissa.

Actualidade
Pirandello escreveu a peça em 1922, pouco depois da Segunda Guerra Mundial e da devastadora gripe espanhola. Quando me ocorreu adaptar a peça pela primeira vez, no início dos anos 1990, a doença mortal que o filme invocaria era a epidemia de SIDA. Quando pude finalmente trabalhar na adaptação, no final de 2018, tinha as alterações climáticas em mente, razão pela qual filmei um mercado de flores industrializado que atesta a beleza e calamidade da optimização económica globalizada. Quando começámos realmente a rodagem, grassava uma outra pandemia completamente diferente. De algum modo, este sentimento de “fim dos tempos” acompanha-nos há um século. Mas a beleza do texto é que permanece intemporalmente preciso a cada variação de destruição provocada pelo homem.

Alvin Curran
Enquanto estive em Roma para uma residência artística em 2018, comecei a investigar um filme sobre 1978 e o crepúsculo de uma década de luta simbolicamente marcada pelo rapto e assassinato de Aldo Moro. Queria fazer um filme que encerrasse um capítulo que começou com o meu primeiro filme, The Anabasis, sobre as lutas que transbordaram em 1968. Em Roma, o meu amigo Maxime Guitton apresentou-me o trabalho de Alvin Curran e, de algum modo, o projecto metamorfoseou-se em algo mais vasto, uma trilogia “romana” informal. A vida e época de Alvin Curran, o fim da composição musical e a urgência de invenção por meio da improvisação tornaram-se metáforas da história política que eu estava a investigar no início do projecto.

Composição livre
Claro que todos os filmes são composições, mas senti que era importante sublinhar a maneira como a Claire Atherton juntou materiais na montagem. A maior parte do som do filme é música e gravações de campo feitas pelo Alvin, mas a Claire tomou uma grande liberdade na sobreposição de camadas, criando sons inteiramente novos e associando-os a palavras das minhas entrevistas com o Alvin, imagens que eu filmara em super 8mm em
Roma e vários arquivos que eu acumulara num processo intuitivo e não numa lógica ilustrativa. Foi uma forma improvisada e livre de trabalhar, uma espécie de composição improvisada no espírito do processo musical de Alvin.

Arte e política
The Anabasis estabelece relações entre o cinema de vanguarda e os movimentos revolucionários no final dos anos 1960 no Japão. Este novo filme estabelece relações mais subterrâneas entre música de vanguarda e movimentos revolucionários uma década mais tarde, em Roma. Mas, para mim, trata-se de algo mais importante do que ligar movimentos artísticos e políticos num tempo e num espaço específicos. Trata-se de pensar o momento presente com este arquivo caleidoscópico em mente. Trata-se de imaginar novos paradigmas quando parece “já não haver música a escrever”. Olhando para a década que vai de 1968 a 1978, não é nostalgia – trata-se do nosso futuro e das formas de invenção que nos conduzirão lá.

Humain, trop humain
Faço parte de uma geração que explorou, investigou e colocou em crise a relação entre imagens e realidade, renovando o género do filme-ensaio. Mas, com o passar do tempo, também me preocupa que este processo tenha atingido o seu limite. Marcámos muito bem a nossa posição e pergunto-me se, inadvertidamente, não teremos cedido demasiado terreno à direita populista incandescente ao escavar de forma incessante o espaço entre “imagens” e “realidade”. Erika Balsom di-lo muito claramente no seu ensaio The Reality Based Community: “Ao afirmar a indiscernibilidade entre facto e ficção, a declaração apavorada de que a realidade colapsou, por vezes, pouco mais consegue do que aprofundar o colapso da realidade. Proclamar a irrealidade do presente retira o peso da gravidade, da crença e da acção, tendo um grande efeito de nivelação em que todas as afirmações ficam a pairar, envoltas em dúvida.”. Na verdade, pode haver uma tarefa importante (e mais arriscada) de um ponto de vista político de pensar em formas novas que proponham uma relação simples e determinada entre as imagens que produzimos e a realidade gravemente maltratada que nos rodeia. É por essa razão que queria mostrar e debater Humain, trop humain (1973). É o único
documentário de Louis Malle que não tem qualquer tipo de narração ou comentário. Apenas imagens directas, filmadas numa fábrica de montagem de carros e numa exposição de venda de automóveis. Quando o filme saiu, houve quem considerasse que fora bem-sucedido a revelar algo sobre as condições da classe operária francesa e a sociedade de consumo e houve quem, sobretudo da extrema esquerda, argumentasse que o filme carecia de uma análise explícita, articulada e militante das condições de trabalho na indústria automóvel. Para esses, as imagens não bastavam. Meio século mais tarde, quero ver o que essas imagens simples, directas e sem comentários nos dizem sobre 1973 e lançar um novo debate sobre a possibilidade de, hoje, produzir imagens que afirmem a sua relação com a actualidade.