Como surgiram as quatro personagens que povoam esta ilha: a mulher, o arqueólogo, o capitalista e a criança?
A Ilha é um lugar que se situa entre a ficção e o documental, e faz referência a Ilha dos Pretos, uma denominação oral dada no século XVIII a uma comunidade de pessoas de origem africana que se estabeleceram na ribeira do rio Sado. A partir das histórias esquecidas desta comunidade e das minhas pesquisas sobre os arquétipos que moldam as nossas identidades e a ideia de alteridade surgiram estas personagens.
Através do desenvolvimento destas personagens, tento contemplar a busca multidimensional da individualidade – constituída através de memórias do passado colonial, através de movimentos de independência e libertação pós-independência.
Todas as personagens referem-se às várias dimensões de tempo – o arqueólogo e conectado ao passado, a capitalista ao presente e a criança ao futuro.
A mulher é uma mãe, uma guerreira, que representa a força dos atos contínuos de cuidado materno, que sustenta a vida, mas também que luta para sua própria individuação.
O arqueólogo tem um papel de observar o tempo e o espaço, de fazer uma mediação entre vários elementos de tempo a partir da terra, do solo, e as histórias que ela carrega.
O capitalista tem o papel de expor o lugar de agora. O personagem surge da crítica aos atuais sistemas extrativistas.
A criança é o futuro, traz para a Ilha o poder de imaginar futuros no momento de agora. No seu corpo ela guarda as histórias do passado, mas a sua inocência traz a possibilidade de imaginar futuros para além das condições atuais.
O texto do filme articula-se entre poesia, fábula, manifesto. Como foi construir esta rede de símbolos e narrativas?
O texto e argumento do filme foi co-criado com a Yara Nakahanda Monteiro, a partir da criação da história da “Ilha” que eu estava a imaginar. O filme é uma fabulação de histórias reais e de certa forma um manifesto para encontrar um outro espaço e futuro que se contrapõem a estruturas de poder hegemônicas e a continuidade que esses sistemas de opressão têm hoje dia.
Os símbolos e as narrativas contêm em si um lugar seguro onde podem ser construídas novas ecologias de cuidado, entre nós próprios e a terra. A diversidade de símbolos, personagens e modos de articulação vem de uma posição eco-feminista que põe a diversidade e o cuidado em primeiro lugar. Como seres humanos, impomos uniformidade na terra, muros de divisão e separação, noções de propriedade e propriedade privada que afastam a nossa espécie da lei desordenada da diversidade de que todos os seres fazem parte. A natureza não funciona em fluxos extrativos lineares de recepção única, mas é um fluxo regenerativo circular onde cada parte dá e recebe. As nossas atuais catástrofes e guerras estão enraizadas numa ganância e incompreensão da Terra e dos seus habitantes, e no controle extractivista dos fluxos da vida. Creio que precisamos de avançar mais para os fluxos naturais de regeneração circular da vida, para ecologias de cuidados onde o fluxo de conhecimento e liberdade não é controlado num sentido, mas sim permitido a todos os seres viverem na diversidade.
É artista multidisciplinar, trabalhando também como desenho, fotografia e som. De que forma é que o cinema se insere na sua prática?
Sim, trabalho com vários meios porque o que me interessa é a ideia de expressão artística como forma de pesquisa, e como se posiciona em relação às questões de identidade, memória e lugar. O cinema é um meio para reflexão desses temas mas é em si mais colaborativo e abrange em si só vários meios de expressão criativa, que tenho vindo a trabalhar como artista visual, como a fotografia, som, texto, performance, vídeo, desenho e direcção artística. O cinema permite-me de uma forma coletiva por várias áreas em comunicação e ação. O cinema, para mim, é uma forma de arte expandida porque explora práticas visuais e sonoras mais diversas do que o mundo da galeria, abre outras articulações de expressão e tem um alcance a um público mais diversificado .