Joana de Sousa entrevista Rosa Coutinho Cabral, realizadora de "A Casa da Rosa"

A Casa da Rosa acompanha a transformação de um espaço mas, acima de tudo, de uma intimidade. Afinal, o que é sentir-se em casa?

Acho que nem sempre se sabe. E não é um assunto universal e generalizável. É uma relação muito pessoal. A casa, se gostamos dela, se a inventamos à medida que a habitamos, não se restringe à arquitectura ou à construção, mas à dimensão do ser (heideggerianamente). Neste sentido, acredito que o lugar que habitamos, construímos, transformamos, onde  dormimos, comemos, choramos, lemos, e tudo o mais, pode ser  o espelhamento da nossa identidade. Porque ela – a casa que nos acolhe e embala (bachelardianamente) –  protege-nos e devolve a nossa imagem ao longo do tempo. Isso só acontece  porque  se instaura uma  relação profundamente amorosa que nos faz sentir inteiros. Por isso suspeito que ela – a casa – sabe mais de nós do que nós dela. Filmar esta relação com a casa, é filmar a pele onde tudo está impresso, revelando imagens que esperam ser desveladas para mostrar quem fui, quem sou, quem vou ser, se calhar. Quando nos é retirado o lugar onde nos sentíamos em casa, ficamos em carne viva porque nos é amputada parte de nós que se sente em casa. O esvaziamento deste lugar é um luto antecipado. Uma grande dor.  Neste filme, a escolha de cada plano é uma gnose e o espelho possível do que é sentir-me em casa e do que é a perda deste sentimento, num acto íntimo de investigação e conhecimento que se mescla com a essência do próprio cinema.

 

Existem vários tempos neste filme, o tempo que demora uma mudança de casa, mas também uma viagem temporal de toda uma vida e a evolução de uma cidade. Como se foram construindo estas relações ao longo do trabalho no filme?

Esta é a resposta mais imediatamente social e política. Na verdade a gentrificação que assistimos na cidade de Lisboa por causa da pressão imobiliária, do turismo e por medidas como a conhecida Lei de Assunção Cristas, coadjuvando a pressão turística, acompanhou a minha estadia no Príncipe Real. Parte da cidade maravilhosa, que começou a ser invadida por bárbaros, que não só ocuparam as ruas, os passeios  como os pequenos lugares do comércio local.

Pouco a pouco íamos sabendo de gente que era deslocada para zonas limítrofes da cidade.

A presença do Alberto, o sapateiro, é uma resistência a tudo isso. E toda a gente que nos rodeava parecia ter disso consciência. Desde os amigos da farmácia, aos seus convivas até, ainda agora, clientes que souberam que entretanto também ele, o sapateiro Alberto,  tinha sido despejado. Uma crueldade para um homem para quem aquele prédio era o seu mundo e o seu lugar.

De uma certa maneira, eu e o Alberto (o sapateiro,) fomo-nos preparando num luto (antecipado como costumo dizer).

A cidade fecha-se aos seus habitantes mais representativos e a mim, este peso de um esvaziamento, de um desvirtuamento do habitar a cidade, muito claramente se prendia com o meu sentimento, ao ponto de sustentar a urgência e a necessidade deste meu filme que é um testemunho na primeira pessoa, uma espécie de diário cinematográfico, que fala por todos os que vivem esta situação.

Espero que este filme fale pelo Alberto,  por mim e, também, por tantos colegas e amigos que atravessaram a mesma situação.

Se a qualidade técnica é inesperadamente pobre, é também a imagem da pobreza das pessoas que, como eu, de repente perdem o seu porto seguro. A sua casa. As suas memórias. E são escorraçadas, se preciso for, para a rua. Não há aqui poesia. Apenas a constatação do que é doloroso e que, filmado sem dinheiro, com equipamentos distintos, tenta no seu melhor, ser um testemunho, e uma reflexão da perda urbana de uma cidade como Lisboa. Uma cidade que infelizmente também perde as suas memórias.

 

A casa é também um lugar de trabalho, onde a Rosa escreveu, imaginou e montou muitos dos seus filmes e também onde recebeu algumas das pessoas com quem desenvolveu projectos. Qual é a relação daquela casa com o seu cinema?

Não sei se posso falar de uma relação específica da casa (de qualquer casa, de resto) com o meu cinema. No entanto, os inúmeros recantos daquela casa,  desde a sua maravilhosa varanda, à sua benéfica luz  e quartos espaçosos de  alto pé direito, pareciam-me destinados, recebendo e estimulando de bom grado o meu trabalho. Como sempre gostei de ter lugares um bocadinho encenados, compunha cantos destinados a olhar, pensar, ler,  juntava à luz natural uma mesa, um cadeirão, uma pilha de livros,  recantos destinados a diversas actividades conforme a luz, o som, o mobiliário. Um cadeirão junto à janela, virado para a varanda e a rua para divagar. Um sofá para poder estirar-me e escrever ao mesmo tempo. Uma secretária como a do Front Page de Billy Wilder, onde arrumava os cadernos para tomar notas, projecto a projecto. Uma mesinha de rodas que me servia de cavalete para pintar. E acontecia, por vezes, conforme o trabalho em curso, decidir trocar o quarto de cama com o escritório. Para mim uma casa sem um escritório é uma casa incompleta – daí que talvez possa afirmar que o escritório é o meu lugar preferido, talvez, o meu refúgio porque estão lá os meus livros, os meus cadernos, e as horas que acumulei a pensar e a inventar coisas, que não interessam a ninguém senão a mim. É como um esconderijo ou uma oficina cheia de coisas mecânicas que só eu sou capaz de pôr a andar e que alimentam as muitas ideias, decisões e indecisões do meu processo criativo. Quase sempre intuitivo. Quase sempre indisciplinado. Sempre livre. Por isso, em cada canto da casa tinha de ter um caderno, um lápis, e um bom assento para escrever. Naquela casa preparei e produzi filmes. Lembrei os lugares onde ia filmar. Concebi e experimentei cenas.  Preparei pequenos spots de trabalho, para montar documentários e ficções de vários filmes como o Arrivederchi Macau, O Bailinho, Coração Negro, Pe san Ié, peças como Bartleby na cabeça de Melville,  textos  para o Hoje Macau, guiões e contos.

Neste sentido, a casa obviamente tem uma relação com o meu cinema, mais como testemunha, observadora, e de acolhimento às necessidades de investigação e imaginação necessárias para me sentir com vontade de escrever, montar, pintar. É testemunha de muitas pressões quando se terminam filmes, candidaturas e decepções quando nada parece resultar.

A relação da casa com o meu cinema, não reside tanto do trabalho que lá desenvolvi, mas na relação que tenho com o espaço habitado ou cinematográfico – semelhante creio, cenográfico, não naturalista. É antes uma formulação que responde a um impulso imediato –gosto mesmo sem saber porquê: pela  luz,  cor,  espacialidade, a forma como se pode circular… e, sobretudo, porque do lugar ( a filmar ou a habitar) emana um profundo sentimento que me é dirigido; que reconheço; que me diz respeito; que me permite viver, conhecer e falar do que quero falar.

 

 

Sessões

08 Out — 21:15 / 112’
Cinema São Jorge Sala M. Oliveira

Competição Portuguesa

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Silêncios

César Pedro

A Casa da Rosa

Rosa Coutinho Cabral
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10 Out — 16:45 / 112’
Culturgest Pequeno Auditório

Competição Portuguesa

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Silêncios

César Pedro

A Casa da Rosa

Rosa Coutinho Cabral
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